quarta-feira, 9 de março de 2011

joão cândido e a consiciência negra



Em 22 de novembro de 1910 dezenas de marinheiros, a maioria negros, tomaram os navios nos quais trabalhavam e apontaram os canhões para a capital federal – Rio de Janeiro – fazendo uma série de exigências. Reclamavam dos baixos salários, das péssimas condições de trabalho, saúde e alimentação e exigiam o fim dos castigos corporais por meio das chibatas, razão pela qual este movimento ficou conhecido por Revolta da Chibata. Cobravam que a Marinha e o Brasil deveriam fazer valer a República de cidadãos e não uma fazenda escravocrata, como atestava o manifesto redigido pelos marinheiros. Então, qual o real significado dessa revolta? Qual a importância dos marinheiros negros, em especial João Cândido para aquele momento e, principalmente, para os dias de hoje quando comemoramos o dia da consciência negra?
Em 1895, alguns anos após a abolição institucional da escravidão, a Escola Nacional de Belas Artes premiava com a medalha de ouro o espanhol radicado no Brasil, Modesto Brocos pela pintura intitulada a “A redenção de Cam”.
O quadro é emblemático, pois logo após a proclamação da República a elite brasileira oriunda dos grandes escravocratas buscava pensar o país sob as bases republicanas. A ideologia dos ex-escravocratas brasileiros afirmava que era preciso garantir a ordem para atingir oprogresso. Ou seja, o país precisaria entrar no rol dos países civilizados. Necessitava-se conquistar o padrão civilizacional e isso só seria possível se nos assemelhássemos e tivéssemos como referência o continente europeu. Logo de pronto, um problema se instalou: - como ser um país civilizado – à semelhança europeia – se a maior parte da população brasileira era composta por negros/as e seus descendentes?
A pintura do espanhol procura responder a esta inquietação. Na cena reproduzida vê-se uma senhora negra com as mãos para o céu agradecendo o fato de seu neto ter nascido branco, visto ser fruto da relação de um homem branco com uma mulher mestiça. O que isso representa? Aponta para a necessidade de embranquecer o país para atingir a civilização tão sonhada pelos escravocratas. Precisava-se regenerar a nação brasileira composta por pessoas de cor – por meio de seu embranquecimento. A imigração europeia foi uma resposta concreta a esta ideologia. O início da República, portanto, foi marcado por ações que pretendiam afastar a população negra das cidades e torná-las parecidas com a Europa. Essa é uma das razões, por exemplo, da Revolta da Vacina e da expulsão da população negra e pobre para os morros do Rio de Janeiro. A redenção de Cam é um retrato da ideologia escravocrata remanescente do Império e que marcava essencialmente a constituição da República e os seus órgãos e instituições com a Marinha brasileira. Representava também todo um projeto da elite republicana para a população negra deste país.
Sabe-se que muitas ideias e justificativas foram utilizadas para escravizar os/as africanos/as. Uma tem importância fundamental: a justificativa religiosa. Setores da Igreja Católica buscando legitimar a escravização africana afirmaram baseados na bíblia (Gênesis 9, 21-27) que os/as africanos/as eram herdeiros de Cam, filho de Noé, amaldiçoado por seu pai e predestinado a ter uma vida de servo, bem como seus descendentes. Num malabarismo histórico, os/as africanos/as forma tornados descendentes de Cam e, portanto, passíveis do amaldiçoamento bíblico.
Nesse sentido, a escravização e os castigos corporais como as chibatadas dos chicotes senhoriais seriam o preço a pagar pela redenção do pecado cometido por Cam. Era a sina da população negra africana e seus descendentes visando a regeneração e purificação dos pecados. A Marinha do Brasil, portanto, empreendia e legitimava a ideologia da escravidão que durante século vicejou em terras nacionais e que com a instituição da República foi reconfigurada por meio da ideologia do branqueamento e, posteriormente, com o mito da Democracia Racial. Mas se esse pensamento funcionou para a classe dominante legitimar seus atos, não serviu aos escravizados e seus descendentes para aceitarem a suposta determinação celestial. Pelo contrário, desde os primeiros dias da escravidão que a resistência a ela se fez sentir de inúmeras formas e de variadas ações: suicídios, fugas, quilombos, quebra de maquinaria, queima da produção, “assassinato” dos senhores e revoltas, muitas revoltas...
O 20 de novembro passou a significar todo esse conjunto de ações que combateu a escravidão, o racismo e busca, até os dias de hoje, construir um país justo e democrático. O dia da consciência negra – comemorado contemporaneamente - é uma data para refletir sobre a condição de vida da população afrodescendente e empreender ações para transformá-la. É uma data de reflexão-ação-reflexão, é um exemplo da práxis transformadora com o objetivo de superar as desigualdades sociais e raciais e edificar outra sociedade livre do racismo e da hierarquização social. Mas o que João Cândido e Revolta dos Marinheiros em 1910 têm a ver com isso?
A revolta dos marujos negros e pobres foi muito mais que um movimento só contra as chibatas. Representou uma reação a ideologia racista e as desigualdades sociais e raciais presentes no Brasil Republicano e materializadas na expulsão dos trabalhadores/as pobres e negros/as para as favelas e na clivagem sócio-racial da marinha com seus oficiais brancos e descendentes dos oligarcas latifundiários e escravocratas e os marujos em sua maioria negros recrutados à força. Ainda se acreditava – como na maldição de Cam – que os negros deveriam ser chicoteados, pois só assim seriam pacificados e regenerados. Engano total!
João Cândido e seus marujos negros provaram o contrário. Disseram para o Brasil inteiro que não aceitavam o mito religioso – mesmo sem ter consciência dele – nem tampouco as condições desiguais impostas. O racismo, as discriminações e o projeto de embranquecimento e “regeneração” pretendido pela elite brasileira foi combatido intensamente por meio dos navios (Minas Gerais, São Paulo e Bahia) tomados pelos marujos negros e pobres liderados por João Cândido.
Sendo a primeira revolta da Marinha organizada e liderada exclusivamente por marujos [...]  russos do Encouraçado Potemkin em 1905.

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